A família Haneman em Portugal
Recordações de uma bisneta de João Haneman
Para expor com alguma ordem o que ouvi contar à minha avó Elisa acerca da família, bem como alguns factos de que tive conhecimento, começo, como é tradição das histórias, com o "era uma vez":
Um dia... tinha eu 14 anos, a avó Elisa descobriu no Diário de Notícias uma participação necrológica acompanhada de uma fotografia que lhe suscitou uma exclamação alvoroçada:
— É o retrato do meu pai, João Haneman!
A notícia referia-se, porém, ao falecimento, em Santa Maria da Feira, a 08.06.1938, de João Augusto da Cunha Sampaio Maia, 1º Conde de São João de Ver.
A partir daí soubemos que o dito Conde era primo do pai da avozinha com quem tinha flagrantes semelhanças físicas, segundo ela, porque eram ambos descendentes dos Morgados de S. Jacinto (distrito de Aveiro). Soube-se também, não sei por que outras vias, que o título fora concedido por três gerações, sendo o primeiro titular esse velho senhor de longas barbas brancas.
Desde essa data surgiu ou ressurgiu o interesse por parte da minha mãe e da minha tia de tentar obter o acesso aos arquivos dessa família, decerto da alta sociedade nortenha, que os teria porventura conservado, por razões históricas inclusive, já que no tempo do bisavô eram os proprietários das terras onde posteriormente foi instalada a base militar de S. Jacinto.
Também através do que na infância ouvira à avozinha, eu já tinha tido conhecimento de alguns aspetos da biografia do nosso bisavô cujo nome 'Haneman', escrito por ele à portuguesa, provinha iniludivelmente do apelido Hanemann ou Hahnemann alemão. O bisavô ou o pai dele seriam alemães. Era presumível que este último, pelo menos, tivesse casado com uma portuguesa. A nossa avó sabia que os Morgados de S. Jacinto eram primos do pai, o que permite a ilação de que a mãe ou avó de João Haneman era uma filha da família de S. Jacinto.
A avó contava que o pai os visitava de tempos a tempos mas, sem que ela soubesse porquê, sentia haver algo de penoso na relação com esse ramo da família, algo como uma mágoa ou antiga ofensa. A avó nunca me deu uma explicação clara para esse relacionamento. Eu, porém, desde sempre me convenci que era fácil de adivinhar o que se teria passado. O pai do bisavô João ter-se-ia apaixonado por uma filha ou irmã do Morgado e teria sido correspondido. Mas a opulenta família dos de S. Jacinto ter-se-ia oposto ao casamento da jovem com um estrangeiro sem raízes no solo português e provavelmente com parcos haveres. Todavia o casamento realizou-se e alguma aliança terá restado com esse lado da família, os primos de S. Jacinto.
Esta explicação, que é verosímil e tem uma certa lógica no contexto da época, é, porém, a minha. A avó também nada sabia da pré-história do pai João Haneman. E durante muitos anos tal assunto não preocupou o seu espírito. Casou, saiu de Águeda para Lisboa. Também nunca me contou como e onde conheceu o nosso avô espanhol João Saavedra. Mas em relação ao pai, contou-me um episódio da maior importância que ocorreu pouco depois da morte do pai: João Haneman, pouco antes de morrer, entregara a um neto que vivia em Águeda com ele uma série de documentos onde se encontrava registada a história pregressa da sua família. Da importância desses papéis deu o jovem sobrinho conhecimento à tia Elisa quando passou por Lisboa para embarcar para o Brasil. Conservou-os na sua posse quando partiu e por lá se perderam com ele, de quem a família nunca mais teve notícia.
A avó então arrependeu-se amargamente de não os ter guardado. Era aliás seu direito enquanto filha mais velha. Nunca perdoou a si própria essa imprevidência.
Do rapaz desaparecido, de nome Oliveto Haneman Soares (?), ficaram uns retratos a carvão que teria feito do avô e de um tio para oferecer à tia Elisa, e que ainda me recordo de os ver enrolados no malão da avó.
De João Haneman, meu bisavô, guardo alguns apontamentos que colhi nas recordações da infância feliz, que a avozinha me contava. O pai que tanto admirava foi quem instalou o telégrafo em Águeda, de cuja estação era o chefe. Julgo que era a par disso inspetor de outras estações do distrito ou região, que percorria frequentes vezes a cavalo, acompanhado na jornada pelo seu cavaquinho de que era excelente tocador.
Contava a avó que o dlim-dlim desse instrumento o livrara uma noite, ao lusco-fusco, da perseguição de um lobo. A avó orgulhava-se muito da coragem do pai, que nas suas deambulações arrostava com diversos perigos. Não era, todavia, um gigante germânico. Belo porte mas média estatura, excelente bailador e com a música nas veias. Assim o pintava a filha e são estes os traços que retive na memória.
Casou com uma jovem de nome Ana, natural de S. João da Madeira, filha de um industrial de chapelaria. Foram muito felizes e tiveram muitos filhos que, na infância, viveram na abundância. Imagino, porém, que mais tarde só poderão ter dado às filhas pequenos dotes. Dos filhos, sei que um se formou em Medicina em Coimbra, onde exercia clínica.
A este breve resumo de lembranças devo acrescentar a referência às sobrinhas da avó que viviam em Águeda: a Glória Haneman, solteira e visionária, tivera umas visões de Nossa Senhora, e a Alcina Haneman Soares de quem conheci as filhas e um neto que estiveram de visita em casa de meus Pais, na Rua Sampaio Pina. A mais velha chamava-se Arlete, era loira e vistosa, e a outra, a Isabel, era morena e simpática, que depois de casada foi viver para a Madeira.
Juntando todos estes elementos que as narrativas da avó Elisa me permitiram fixar e aqui confio ao papel, concluo que a melhor pista para chegar à origem da família Haneman em Portugal são os arquivos dos descendentes do Conde de S. João de Ver.
É provável que na alta sociedade nortenha haja quem conheça o apelido dos seus descendentes. Uma vez obtidos nomes e moradas, valeria a pena contactá-los. Talvez tenham tido maior cuidado em preservar a história da família deles, tangente à minha...
(sem data)
Manuela de Sousa Marques