Manuela, uma viajante pelas letras
1. Origens familiares, nascimento e infância
Germanista portuguesa de ascendência alemã e castelhana, professora, tradutora, ensaísta e autora de crítica literária e teatral, MANUELA DE SOUSA MARQUES nasceu em Portugal a 31 de Maio de 1924 na vila da Lourinhã, concelho da Lourinhã, filha homónima de MANUEL JAYME DA COSTA SOUSA MARQUES, então delegado do Ministério Público e mais tarde juiz-corregedor da 1ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, e de MARIA CHRISTINA HANEMANN SAAVEDRA (DE SOUSA MARQUES), romanista que esteve entre as primeiras senhoras a estudar no Curso Superior de Letras de Lisboa, o embrião da futura Faculdade de Letras da capital portuguesa.
Os pais eram ambos lisboetas e o seu nascimento na romântica povoação costeira do Oeste foi acidental, já que ali se tinham estabelecido poucos anos antes por motivos profissionais – a carreira de magistrado de Manuel Jaime requeria serviço como delegado do ministério público nas comarcas da província. Desses primeiros anos vividos à beira-mar ficou-lhe para sempre um gosto acentuado pelos ambientes marinhos. Durante a juventude voltaria inúmeras vezes com seus pais à região natal durante a época balnear (praias da Areia Branca, São Bernardino, Consolação e Ilha da Berlenga), onde se tornaria exímia nadadora.
2. Juventude e formação literária
Foi muito cedo que a jovem Manuela iniciou o aprendizado do alemão, a língua dos seus trisavós Hahnemann que um dia, por razões ainda hoje desconhecidas, vieram viver para o extremo ocidental da Europa. Maria Christina lamentava ter perdido o vínculo linguístico com essas raízes — sendo uma notável filóloga, muito procurada como professora particular de latim por várias gerações de alunos universitários dos cursos de Letras e de Direito da Universidade de Lisboa, foi ela própria quem instruiu a filha em casa em francês e latim, a par das outras disciplinas de Letras e parcialmente das de Ciências que compunham o ciclo de estudos do então chamado 'lyceu', com a colaboração do C.el Santos Paiva, professor aposentado do Colégio Fernão de Magalhães, e de várias professoras nativas de alemão e inglês (as famosas Fräuleins e Misses como eram então chamadas).
Manuela seguiu ainda o curso de piano do professor Fernando Botelho Leitão até ao exame do 9º ano do Curso Superior de Piano do Conservatório Nacional de Lisboa – escola aliás fundada por Almeida Garrett, o protorromântico português que foi sempre, entre os escritores portugueses, um dos seus autores prediletos a par de Eça. Manuela finalizou os estudos liceais com brilhantes exames públicos no Lyceu D. Filipa de Lencastre, os antigos 2º ciclo (1939-40) e 3º ciclo (1940-41) do Curso Complementar dos Liceus (mais tarde chamados 6º e 7º anos, atualmente 10º e 11º anos) quer de Ciências, quer de Letras. Até ao final dos seus estudos secundários considerou a hipótese de cursar Astronomia, um percurso do qual desistiria em favor da Filologia Germânica. Dessa sua formação pré-universitária adquirida em regime doméstico ficou-lhe um amplo domínio das línguas, adicionando ao francês, inglês e alemão o outro idioma reminiscente das suas raízes familiares, o castelhano. A poliglossia seria para ela um valioso instrumento, quer como estudante de Letras, quer como professora universitária e mais tarde como tradutora.
3. A viagem pelas letras
Manuela nunca fez as grandes viagens marítimas tão comuns na sua época. De barco navegou apenas de Lisboa ao Porto no velho Ibo (o leme deste histórico barco encontra-se no Museu da Marinha) e em 1961 para o arquipélago da Madeira. Mas sentiu sempre uma atração poderosa pelo mundo das grandes viagens de barco que conhecia dos relatos, fictícios e reais, feitos pelos navegadores, em especial os que leu nas obras de Jules Verne e de Pierre Loti. Foi como armchair traveller e pela mão dos melhores autores que aprendeu os costumes das regiões mais remotas do planeta, em relatos de viagens pela Sibéria, o Cáucaso, a Anatólia, o Extremo Oriente. Pelo mundo real viajou pouco: Espanha e França de automóvel e por via aérea o Ultramar Português – Angola e Moçambique – integrada na comitiva de professores universitários que aí realizou o famoso Primeiro Curso de Férias da Universidade de Lisboa em Luanda e Lourenço Marques (agosto de 1960). Esse curso de Verão era composto por conferências pluridisciplinares destinadas a preparar a implantação dos estudos universitários nas capitais coloniais, promovida por Marcello Caetano, então reitor da Universidade. O mesmo curso seria repetido no Arquipélago da Madeira no ano seguinte, o que motivou a viagem atrás referida. Só aos 52 anos visitaria essa Alemanha cuja literatura e cultura tanto amara, cultivara e ensinara em Portugal, numa única visita, organizada pelo Instituto Goethe, que juntou tradutores de alemão de Portugal, Espanha e Brasil para um colóquio de tradutologia em Götingen.
4. O convívio com os clássicos
O seu amor pela literatura suscitou-lhe desde a adolescência a constante leitura dos grandes clássicos das várias culturas europeias e extraeuropeias, sobretudo Goethe, Schiller, Novalis e Hölderlin entre os primeiros, e os contos das Mil e Uma Noites ou do japonês Okakura Kakuzo, entre os segundos. Os seus amigos alemães admiravam a pureza do idioma que falava tão fluentemente, mas com um certo cunho antiquado pois aprendera a língua germânica no convívio com os melhores escritores sem se familiarizar com os modismos recentes do alemão falado. O gosto pelos textos que a tradição literária consagra, os clássicos e os românticos, não a impediu de apreciar os contemporâneos, em especial dois autores germânicos da sua predileção, Hermann Hesse e Thomas Mann, bem como o francês André Gide.
5. Os anos da Universidade de Lisboa: aprendizado e docência
Foi aluna da secção de Filologia Germânica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no quadriénio 1941/42 a 1945/46. Durante o curso fez parte da equipe que auxiliou o Prof. Wolfgang Kayser (1906-1960) na preparação da sua obra Fundamentos da Interpretação e da Análise Literária, 2 vols, Coimbra: Arménio Amado 1948 [v. agradecimento na p. viii desse livro]. A edição alemã deste manual, com o título Das sprachliche Kunstwerk. Eine Einführung in die Literaturwissenschaft [ed. orig. 1948] conta com mais de 20 reedições. Além deste grande mestre foi igualmente aluna de Delfim Santos (1907-1966) em História da Educação, a partir de janeiro de 1943, quando o jovem filósofo, então com 35 anos, se estreava na universidade portuguesa após 5 anos de serviço no leitorado em Berlim, e para cuja cadeira Manuela redigiu o estudo sobre o Wilhelm Meister, de Goethe; e igualmente de Vitorino Nemésio (1901-1978) e de Hernâni Cidade (1887-1975) em Literatura Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011) e de Manuel Heleno (1894-1970) em História, de Frederico Laranjo em Gramática Comparativa das Línguas Europeias. Seriam seus colegas de curso, entre outros, a escritora Maria Judite de Carvalho (1921-1998), a poetisa Matilde Rosa Araújo (1921-2010), a professora Maria de Lourdes Belchior (1923-1998) e teve como condiscípulos oriundos de outros cursos o político Mário Soares e os escritores e professores Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira, Sebastião da Gama, Rui Grácio e Lindley Cintra. Este último dividiu com ela a raríssima distinção de se ter graduado com 19/20 valores.
Em 1946 inicia a sua carreira docente como parte da primeira geração local a substituir os mestres alemães na universidade portuguesa, saneados por razões políticas. Sucedeu ao Prof. Kayser na regência das várias cadeiras de Literatura Alemã. No mesmo ano de 1946 inicia uma ligação afetiva com o seu antigo professor Delfim Santos, com quem casará cerca de dez anos mais tarde a 5 de Novembro de 1957 e dele enviuvará quando, com a idade de 58 anos (a 25 de Set. de 1966), o filósofo falecerá precocemente em Cascais, Portugal.
Após cinco anos de ensino da Literatura Alemã, marcando profundamente as gerações de alunos que passaram por esses cursos de Filologia Germânica – algumas das suas alunas tornaram-se amigas para toda a vida – deixou a docência e passou a consagrar-se exclusivamente a uma nova carreira como tradutora a partir de finais de 1951, ano em que publica um dos seus mais fecundos trabalhos de crítica literária sobre a novela e o drama kleistianos.
6. A tradução como diálogo entre tradutor e autor
Já no ano seguinte, em 1952, Manuela será a primeira tradutora em Portugal do escritor alemão Hermann Hesse (Prémio Nobel da Literatura de 1946), com quem se correspondeu a propósito desse trabalho. Escolhe para as primícias do seu labor a novela de Hesse Ele e o Outro, que propõe à casa editora Guimarães. Em reflexão posterior, Manuela conta-nos o impulso que a levou a prestar com esta versão um tributo estético a um autor que lera num momento de particular recetividade: «(...eu) respondia ao chamamento daquela obra e como que retribuía a influência que exercera em mim (móbil de pessoal complacência que agora julgo poder analisar na dialética do escolher-ser-escolhido...) essa história fascinante de um pequeno funcionário e chefe de família exemplar que um dia transpõe as barreiras da cidadania conformista e conformada, revolta-se, liberta-se, desespera-se e só encontra a revelação do sentido da vida no instante derradeiro que precede a sua morte nas plúmbeas águas de um lago de Itália».
A obra de Hesse integrava-se na sensibilidade literária e filosófica daquele tempo, tão profundamente influída pelo movimento existencialista de que Delfim Santos foi em Portugal o mais informado estudioso (pelo seu contacto direto com os filósofos alemães) e expositor (em múltiplas palestras e conferências). Não surpreende pois que tenha sido o filósofo português, amigo e correspondente de Hermann Hesse, quem incentivou a publicação dos seus primeiros trabalhos de tradução (e selecionou alguns autores que se seguiram), prefaciando tanto a novela de Hesse Ele e o Outro como, quase uma década depois, em 1961, a Iniciação Filosófica de Karl Jaspers. Entre as traduções de filósofos que Manuela ofereceu aos leitores de língua portuguesa destaca-se ainda a versão de Kant, Crítica da Razão Pura. Mais de três décadas passadas, o seu filho solicitou-lhe a versão portuguesa dos poemas nietzschianos contidos nos Ditirambos de Diónisos que ele estudou e prefaciou, trabalho que viria a ser publicado por ambos em 1986. Este seu último labor literário resgata a insatisfação que o leitor exigente sentia perante uma anterior tradução portuguesa publicada em 1960 no Porto. Em 1995, o escultor Rui Chafes, na sua obra Würzburg, Bolton, Landing, afirmaria a preferência pela versão de Manuela dos poemas nietzschianos 'Só Doido! Só Poeta!' e 'Entre Aves de Rapina' [Lisboa: Assírio & Alvim, 131-137]. Por fim, foi em 2000 que terminou a tradução, iniciada vinte anos antes, de uma elegia rilkeana, versão que dedicou a seu filho, último companheiro dos seus afazeres literários.
7. amizades literárias
Cultivou a amizade com notáveis autores e intelectuais portugueses do seu tempo. Além da condiscípula Matilde Rosa Araújo (1921-2010), contam-se de uma longa lista a poetisa Natália Correia (1923-1993), o escritor e crítico João Gaspar Simões (1903-1987), a poetisa Natércia Freire (1919-2004) e os escritores Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), José Osório de Oliveira (1900-1964), José-Augusto França (1922-), Domingos Monteiro (1903-1980), Soledade Summavielle, Isabel da Nóbrega (1925-), e também o historiador Joel Serrão (1919-2008) e o dramaturgo Hélder Prista Monteiro (1922-1994), que lhe submetia as suas peças antes de as publicar.Entre os muitos estrangeiros com quem se correspondeu cabe destacar o já mencionado Hermann Hesse (1877-1962), Prémio Nobel da Literatura de 1946, e o jusfilósofo paulista Miguel Reale (1910-2006).
8. No Ministério de Educação português
A partir de 1971 Manuela integra o Instituto de Meios Audiovisuais de Educação (IMAVE), mais tarde Instituto de Tecnologia Educativa (ITE), embriões da futura Universidade Aberta, instituições onde desenvolverá importante ação no domínio da pedagogia, da divulgação científica e da didática. Delfim Santos fora, muitos anos antes, um dos propugnadores e delineadores desta instituição e Presidente da sua Assembleia Geral.
A partir de 1978 e até 1992 ocupou-se, na sua qualidade de tradutora, das relações exteriores dos serviços centrais do Ministério da Educação.
9. APOSENTAÇãO; ORGANIZAÇÃo DO ESPÓLIO DE DELFIM SANTOS; LEITURAS
Em 1992 aposentou-se do serviço público e entre outros trabalhos literários desenvolveu desde então um esforço intenso de estudo e preparação da extensa documentação que integra o Arquivo Delfim Santos, entidade encarregue da divulgação do espólio de Delfim Santos, que fundou e codirigiu com seu filho.
Nos seus últimos tempos continuou a ser uma grande leitora de ensaios, biografias, diários e epístolas, como por exemplo de obras sobre a Marquesa de Alorna, os condes Tolstoi, Garrett, D. Pedro IV e D. Maria II, ou D. Manuel II, que comentava apaixonadamente e dos quais redigia por vezes notas de leitura.
Apesar das posições políticas, sociais e morais de cunho progressista que sempre defendeu e com as quais foi coerente na simplicidade da vida que adotou e no trato com todas as classes e pessoas — posições que lhe valeram algum ostracismo institucional no Ministério da Educação na sequência do 25 de novembro de 1975 — viria no final a aproximar-se do Trono e do Altar, fiel à memória venerada do seu avô paterno, o General Sousa Marques, amigo próximo da família real e que no 5 de outubro de 1910 fora um dos últimos defensores militares da monarquia.
Faleceu em Lisboa, aos 30 de março de 2015, a dois meses de perfazer 91 anos de idade.