Hermann Hesse em Portugal – 1978
Apontamentos sobre a sua tradução e receção;
Versão portuguesa dos últimos parágrafos do capítulo final de 'Ele e o Outro'
Ilustrado com aguarelas de H. Hesse
O inesperado e honroso convite para colaborar na comemoração do centésimo aniversário do nascimento de H. Hesse, autor contemporâneo a que me liga fervorosa admiração, suscitou-me dois impulsos aparentemente divergentes mas que de facto convergiram numa imediata ligação a este ciclo festivo promovido pelo Instituto Alemão de Lisboa. E, ao explicar a ambivalência dessa reação, desde já justifico a minha presença aqui, junto de vós, para uma breve e despretensiosa conversa que tem mais o cunho do depoimento pessoal do que o de discursiva ou sistemática exposição de um tema.
Pertencendo ao número dos fiéis admiradores – e cada vez mais lucidamente fiéis – deste venerável mestre de humanismo, desde o dia já remoto de 3 décadas em que me foi dado ler um livro de capa verde da editora Suhrkamp, intitulado Weg nach Innen, a proposta para conversar convosco sobre o tema Hermann Hesse em Portugal avivou-me com funda emoção a lembrança desse primeiro contacto, do impacto recebido e da admiração sempre renovada e sem intermitências que desde então dediquei à sua obra. Por outro lado, o tema que me era gentilmente proposto (porventura com fundamento na circunstância de ter sido eu a pioneira da versão para português de alguns textos de Hesse), vinha recordar-me o retumbante malogro dessa longínqua tentativa de difundir em Portugal o conhecimento de um grande escritor e o reduzido êxito de um trabalho que visava despertar a curiosidade e a apetência do leitor por todos os escritos saídos da pena de Hesse. Com efeito, ao pretender neste momento reunir indícios que permitissem avaliar a repercussão dessa tentativa (e de outras quiçá dirigidas para a mesma finalidade e inclusivamente provenientes de mais autorizadas vozes), tanto no domínio da tradução como no da interpretação e chamada de atenção, dispunha de bem escasso material. O conjunto de dados objetivos que me foi possível recolher revelou-me que a penetração do nome e dos escritos de Hesse em Portugal ficou muito aquém das expectativas de todos nós, seus poucos mas fervorosos admiradores.
Se procedermos ao balanço da carreira editorial de Ele e o Outro — título em português da narrativa Klein und Wagner publicada em 1952 — e também da de Narciso e Goldmundo publicada em 1956, verificamos que ao longo dos 27 anos que mediaram entre o lançamento da primeira tradução e a atualidade, e dos 21 que passaram sobre a segunda, estas obras não atingiram largas camadas de um público leitor; constata-se, com mágoa, que Hesse não foi ainda descoberto em Portugal e que a hora da sua influência em grande escala ainda não soou para nós. Com efeito, os 2.000 exemplares de Ele e o Outro, lançados no mercado há 25 anos, só há pouco se esgotaram, conforme informação obtida junto da casa editora; e os 2.500 de Narciso e Goldmundo ainda nem sequer foram vendidos todos.
Aliás, a publicação em 1971 de uma versão portuguesa de Siddhartha, assinada por Fernanda Pinto Rodrigues, confirmou a necessidade que se fazia sentir de uma nova investida nesse sentido, apoiada pela fama mundial e pela voga desse belo romance-poema nos EUA dos anos 60.
Este momento de homenagem, por ocasião do centenário do nascimento do nosso autor, constituirá decerto o ensejo adequado para dar novo impulso à difusão de uma obra que, conforme o Dr. Volker Michels acaba de nos relatar, tem tiragens fabulosas nos mais diversos idiomas do mundo, tiragens que ascendem à ordem dos milhões. Compreende-se o interesse em aproveitar esta oportunidade para fazer o ponto das tentativas realizadas nesse sentido em Portugal através de uma resenha. Reconheci, todavia, que, por minha parte, mais não poderia que dar uma modesta contribuição para essa pesquisa. Os apontamentos que tenho o gosto de vos apresentar não são fruto de uma sistemática e rigorosa investigação. Circunscrevem-se predominantemente a factos de que tive mais próximo ou direto conhecimento e a referências que o meu interesse por tudo quanto respeitasse a este tema me levou a registar. De qualquer modo, poderão valer como ponto de partida para futuros estudos, mais rigorosos e exaustivos, que permitam fundamentar hipóteses ou extrair conclusões de válido alcance sócio-literário.
Após este necessário preâmbulo, que desde já limita a minha intervenção ao âmbito de um depoimento de cunho pessoal, passo à enumeração dos dados objetivos que chegaram ao meu conhecimento:
Foi em 16 de Novembro de 1946 que Delfim Santos, filósofo e pedagogo português chegado da Alemanha havia 4 anos, onde vivera alguns anos de estudo da filosofia alemã, publicou no vespertino lisboeta Diário Popular um artigo intitulado H. Hesse, Prémio Nobel da Literatura — Delfim SANTOS (1946) Hermann Hesse, Prémio Nobel da Literatura, Diário Popular, Lisboa, 16.11; rep. (2009) Obras Completas 2.º vol., Lisboa, 89-90 —. Julgo ter sido esta a primeira chamada de atenção para o prestígio e significado da obra de Hesse.
Nesse artigo, o professor português (que, diga-se a propósito, tanto haveria de contribuir para o conhecimento da cultura alemã entre nós) evoca num sugestivo apontamento o ambiente de segredo e confidencialidade em que os admiradores do autor do Der Steppenwolf mencionavam o seu nome nos anos que precederam o termo da 2ª Guerra Mundial:
«Recordo-me — escreve ele — que, numa reunião de artistas e escritores na Casa da Imprensa de Berlim alguém se abeirou de nós com o intuito talvez curioso de falar com um português de coisas de interesse comum... Explica-se pois que esse alguém (célebre mundialmente como escultor) após a primeira troca de impressões nos fizesse a pergunta: "—Quem julga ser o maior romancista alemão da atualidade?". A resposta, um pouco timidamente expressa por motivos fáceis de compreender, foi apenas: "—Hermann Hesse". Quando tal ouviu, o nosso interlocutor, visivelmente emocionado, tomou-nos o braço e dirigindo-se ao criado ordenou: "—Champanhe, bitte!". Ficámos algumas horas a um canto da sala, trocando impressões, e a enaltecermos em admiração comum esse homem extraordinário de quem não convinha falar abertamente. O nosso interlocutor havia sido companheiro de estudos e tão próximo amigo do artista que este, num dos seus livros, o tinha feito personagem principal».
Tratava-se do escultor suíço Hermann Haller (Berna 1880-Zurique 1950), em quem Hermann Hesse se inspirara para criar Harry Haller, o protagonista de Der Steppenwolf.
Nesse mesmo artigo Delfim Santos previa que a atribuição do Prémio Nobel desencadeasse uma onda de interesse que levaria qualquer editor português atento a apresentar em Portugal algumas das suas obras mais representativas.
A previsão, que era um voto, não se realizaria tão cedo. Mas foi ainda por seu incitamento e empenho que oito anos mais tarde surgiria a primeira versão portuguesa de uma novela de Hesse. Na introdução que escreveu para esta edição de Klein und Wagner, Delfim Santos refere que a autorização do escritor para a versão portuguesa lhe fora concedida pessoalmente, sob a condição da sua supervisão, aquando de uma visita feita ao eremita de Montagnola em 1948. Após essa visita Delfim Santos escreveu-lhe uma carta em que menciona esses trabalhos de tradução. Só em 1952, porém, a Editora Guimarães — e honra seja prestada à sua diretora Maria Leonor Cunha Leão (1909-1977), que há pouco desapareceu do nosso convívio — tomou a decisão de lançar um texto de Hermann Hesse na sua coleção 'Obras Primas Contemporâneas'.
A tradução estava feita, guardada na gaveta. Revolvendo essas recordações, aqui retomo o depoimento pessoal; se recorro, porém, a pormenores que a retrospeção me permite fixar, sirvo apenas o intento de mostrar a influência insuspeita, mas tantas vezes decisiva, de fatores circunstanciais e subjetivos na génese de um projeto: nesse caso o desígnio objetivo de apresentar ao leitor português uma amostra da obra de um grande escritor e humanista. Pode-se perguntar, e com sobeja justificação, porque teria incidido a escolha em Klein und Wagner, narrativa que, embora notável e do período da plena maturidade do escritor, não tinha a fama e a mais larga audiência de um Lobo das Estepes, um Siddhartha ou um Narciso e Goldmundo?
Vejo-me obrigada a confessar aqui que o que determinou a escolha de Klein und Wagner foram fatores de ordem emocional e vivencial que prevaleceram sobre a ponderada reflexão crítica. Lida num momento de crise pessoal, era a segunda novela inserida em Weg nach Innen, o livro de capa verde das fabulosas descobertas, e desencadeou a adesão nunca mais desmentida ao pensamento, ao estilo, aos temas e conteúdos das obras de Hesse. Escrita em 1919, ano de fecunda criação que viu nascer a primeira parte de Siddhartha e outros escritos, após a superação pelo autor do tremendo abalo dos anos da Grande Guerra, constituiu esta obra para mim uma revelação e um esclarecimento que me levaram ao sucessivo consumo de toda a literatura e bibliografia hessiana de que pude lançar mão. Daí, no propósito de tornar extensivo esse impacto a outros menos privilegiados no conhecimento do alemão, foi um pequeno passo em breve iniciado, sem atender à probabilidade de eventuais condições para a sua publicação mas, evidentemente, tendo em mira esse objetivo. Porquanto se era certo que respondia ao chamamento daquela obra e como que retribuía a influência que exercera em mim — móbil de pessoal complacência que agora julgo poder analisar na dialética do escolher-ser-escolhido — o motivo claro e preponderante era contribuir para outros encontros de análoga repercussão. Eis por que razões e ponderações especulativas foram alheias à versão dessa história fascinante de um pequeno funcionário e chefe de família exemplar que um dia transpõe as barreiras da cidadania conformista e conformada, revolta-se, liberta-se, desespera-se e só encontra a revelação do sentido da vida no instante derradeiro que precede a sua morte nas plúmbeas águas de um lago de Itália.
Publicado o livrinho com o título Ele e o Outro, de que adiante vos darei razão, não me chegou notícia de ampla recetividade. Acredito que a alguns terá tocado, apesar do filtro da tradução, como àquele fortuito companheiro de uma viagem de autocarro, com aspeto de operário qualificado, que vi, com grata surpresa, tão embebido na sua leitura que nem deu pela interpelação do revisor.
Entretanto, o primeiro impulso estava dado, os contactos firmados, e a editora, essa sim, não esmoreceu o entusiasmo: manteve o seu compromisso e dispôs-se a cometimento de maior fôlego. Desta feita a obra escolhida foi Narziss und Goldmund. E, se me não me trai a memória, o consenso da crítica europeia que unanimemente enaltece este romance de Hesse terá pesado decisivamente na escolha. Muitos críticos a consideram uma das mais belas narrativas da literatura alemã. E. R. Curtius, nos Ensaios Críticos de Literatura Europeia, refere-a em termos encomiásticos: «Um livro maravilhoso na sua inteligência poética, no caldeamento de elementos românticos com outros modernos, psicológicos e psicanalíticos»; Thomas Mann sublinha que o Narziss é uma criação romanesca que em sua pureza e encanto é verdadeiramente única. Outras razões, decerto, teriam condicionado a opção que neste caso foi refletida e atenta à finalidade visada. Provavelmente consideramos que a sua estrutura muito clara e simétrica, a transparência da linguagem que sustenta esse romance de formação de um artista, desenrolado num cenário medieval estilizado, mas sem pitorescos revivalismos, eram condições favoráveis à imediata comunicação de um prazer estético e que, por conseguinte, bem justificavam aceitar o desafio que logo o primeiro longo parágrafo do prelúdio lança ao tradutor.
Adiante retomarei o fio das considerações que me responsabilizaram pela tradução desta ou daquela obra e do modo pelo qual tentei levá-la a cabo. Para já importa prosseguir o todavia incompleto relato da receção hessiana em Portugal, e seguir a pista das referências, artigos e trabalhos de crítica e exegese que surgiram por outras vias que não a da aproximação do leitor comum através da tradução. O que a esse respeito nos revela o interesse manifestado no âmbito universitário e os artigos de revistas e páginas literárias de jornais, desde o rodapé de um matutino até ao ensaio de alto nível interpretativo, mostram-nos todos eles que Hesse, em Portugal, é conhecido por um círculo seleto de intelectuais e especialistas, não tão numeroso quanto seria desejável, mas real e efetivamente empenhado em dar a conhecê-lo. Nas universidades não faltam, como seria de esperar, trabalhos versando temas hessianos — da sua vida e obra. Assim vejamos: na Universidade de Lisboa regista-se na secção de Estudos Germanísticos a apresentação de dissertações para licenciatura em 1951, 1957, 1961, 1968, respetivamente sobre O Conceito de vida em alguns romances de Hesse; Aspetos do problema da crise na obra de Hesse; O problema existencial na obra de Hesse e Alguns aspetos do romance 'Narciso e Goldmundo'. Na Universidade de Coimbra constam igualmente dos ficheiros do Instituto de Estudos Alemães teses para licenciatura datadas de 1948, 1951 e 1953 que se ocupam do problema religioso na obra de Hesse, de reflexos da sua vida e personalidade no seu labor literário e do estudo da sua poesia. Trabalhos inéditos, infelizmente remetidos às prateleiras de bibliotecas especializadas, logo que cumprida a sua função limitada à obtenção do grau académico. De origem e nível universitário, porém docente, impõe-se citar aqui com particular realce os estudos dedicados a aspetos específicos da obra de Hesse da autoria de Ivete Centeno, da Universidade Nova de Lisboa, que têm vindo a lume em revista e livro. A autora também participa nesta comemoração, e sem dúvida terá dado dos mais relevantes contributos para o conhecimento e interpretação dos textos de Hesse por parte da intelligentsia portuguesa. Menciono as suas 'Notas sobre a Viagem ao Oriente', inicialmente publicadas na revista Biblos em 1975 e posteriormente incluídas numa coletânea de ensaios do mesmo ano: 5 Aproximações: Peter Weiss, A. Ramos Rosa, Alquimia e Misticismo, Fernando Pessoa, Hermann Hesse; uma reflexão completada em 1978 no seu ensaio: Símbolos de Totalidade na Obra de Hermann Hesse: 'Demian', 'Siddhartha', 'Die Morgenlandfahrt', 'Das Glasperlenspiel'. Da autoria de um novelista e ensaísta que é também professor universitário e um dos nomes de maior relevo nacional e projeção internacional das letras portuguesas contemporâneas, Urbano Tavares Rodrigues, cabe mencionar o curto mas denso ensaio de 1958, intitulado 'A morte de Narciso-Goldmundo' incluso em O Tema da Morte [aqui na 2.ª ed. de 1966, existe uma 3.ª de 1978].
Outros livros dedicados à literatura alemã, como os Apontamentos de literatura alemã de Elviro Rocha Gomes, Faro: E. R. Gomes, 1966, contêm páginas sobre aspetos quer da personalidade, quer da obra de Hesse. E mais haveria a mencionar se o meu intuito não se limitasse, como de antemão preveni, a um relance do que até hoje chegou ao meu conhecimento. Pretendia no entanto aludir ainda, porque data do ano longínquo de 1948 e pela razão que de imediato apontarei, a um artigo assinado por Vasco de Lemos Mourisca publicado na página literária de O Primeiro de Janeiro, matutino de grande circulação no Norte do País, que contém a par da chamada de atenção para «este grande poeta de quem pouco se sabe fora das esferas universitárias», as primeiras e porventura únicas traduções publicadas de dois poemas de Hesse: «Vida de uma Flor» e «Este é o meu sofrimento». Também Otto Maria Carpeaux publicou ainda na década de 40 um interessante artigo sobre Hesse em O Mundo Literário, revista de cultura prestigiosamente colaborada, porém de restrita expansão. No entanto, tudo quanto se possa rastrear do apelo que tenha tido, para um público erudito, esse grande humanista e Mestre do Jogo das Pérolas de Vidro, um público que mesmo quando não domina o alemão lê à vontade o inglês ou o francês, tudo isso, diria, representa apenas uma parte da repercussão que desejaríamos que a sua obra obtivesse no nosso país, à semelhança do que sabemos ter acontecido em tantas outras partes. E julgo que todos estamos de acordo em que essa conquista de largas camadas de leitores, jovens sobretudo, só por via de tradução se alcançará, como se verificou pelo mundo fora. Tê-lo-á reconhecido a editorial Minerva que promoveu em 1974 a versão portuguesa de Siddhartha, (assinada por Fernanda Pinto Rodrigues) talvez a narrativa de Hesse mais difundida em todos os continentes.
Parece-nos que dependerá em grande parte da continuidade de uma persistente atividade de tradução o poder dar-se em Portugal um fenómeno idêntico ao que surgiu noutros países, com particular incidência nas camadas jovens. Tenho esperança de que por essa via, e não por imitação de modas, os jovens e todos os que não perderam a juventude da alma e do espírito, encontrarão na obra de Hesse eco e resposta a muitos dos seus problemas, clarificados e harmonizados na expressão estética do romance, da narrativa e do poema.
Porque o inconformismo da juventude perante os males do nosso tempo — e outros que são de todos os tempos —, encontra-se expresso na aventura espiritual que este autor sempre jovem descreve numa obra, cujo tema fundamental é o destino do indivíduo desenrolando-se no confronto com esses males, em demanda da sageza e do amor fati pelo caminho do intransigente auto-desvendamento.
A influência que a obra de Hesse exerceu na atualidade, acerca da qual ouvimos o Dr. VoIker Michels com a aguda clarividência e a autoridade que lhe assiste na sua qualidade de atual editor de todo o espólio hessiano, radica numa aspiração a um renovo humanista ou, simplesmente, à experiência de novas formas de vida mais sãs, mais esclarecidas, em que o indivíduo se realize mais autêntico e inteiro, «Para ser grande sê inteiro» disse Ricardo Reis, Hesse poderia dizer: «Para ser homem, sê inteiro». É essa mensagem de integralidade e autenticidade que assumirá infalivelmente importância para a nossa juventude, quando o descobrir.
No dia em que casualmente deparei com uma referência a Hermann Hesse num livro sobre a Comunicação onde não esperava encontrá-lo – Guerra e Paz na Aldeia Planetária, de Marshall McLuhan – compreendi num lampejo revelador que a intenção profunda que me ditou o exercício de tradução fora a confiança que depunha na sua vis formativa. McLuhan comenta o impressionante sucesso de Siddartha junto da mocidade do seu tempo «que se sente estranha num mundo fragmentado e mecanizado cujas estruturas classificadas oferecem apenas uma gaveta a cada indivíduo», «um mundo onde as cidades e as escolas apresentam modos de experiência descontínuos e não integrais... ». Acentuando a não integralidade e a descontinuidade da experiência da grande maioria dos habitantes do mundo ocidental, o germanista e polémico filósofo canadiano aponta para o que considero ser a força indiretamente pedagógica da obra de Hesse.
O poeta e o artista que é H. Hesse sobreleva o pensador e o moralista que nele coexistiam, induzindo-nos porventura a relegar para segundo plano o valor da sua ação de humanista nas angustiosas conjunturas do seu tempo. Para nós impõe-se a componente formativa que assume, cônscio da problemática que na nossa época lhe é inerente, muito embora recusasse a missão específica de propugnador de qualquer doutrina ou ensinamento. Se considerarmos, porém, a sua obra no plano dos géneros, dos temas, dos esquemas, e da narrativa, reconhecemos-lhe uma feição de ordem incontestavelmente formativa. A própria estrutura dos seus romances e narrativas insere-se na tradição genuinamente alemã do Bildungsroman, o que já é indício da sua profunda preocupação com a formação do indivíduo: não pertencem ao âmbito genérico do romance social ou psicológico; alinham estruturalmente com antepassados como o Hyperion, o Ofterdingen, o Grüner Heinrich na senda do portentoso modelo do Wilhelm Meister, e todos sabemos que o tema fundamental da sua obra é a aventura concreta e espiritual de um ser humano em demanda de um sentido para a vida; e que o esquema da ação das suas narrativas nos desvenda o processo dialético da plena eclosão do destino de um indivíduo através dos conflitos do «eu», consigo próprio e com o mundo e mediante sínteses sucessivas das antinomias e bipolaridades em que a condição humana o envencilha.
O modo como os seus heróis vivem a transcensão da dualidade Natureza-Espírito, Indivíduo-Comunidade, Consciente-Inconsciente, pode constituir uma ordenação da experiência tanto mais válida para nós, que vivemos numa época dilacerada por solicitações de sinais opostos, quanto mais aberta e isenta de dogmatismo ou unilateral é a opção como no caso de Hesse, em que se assume como radical solidariedade. Sendo axiologicamente centrada no valor do indivíduo e da sua irredutível «diferença», é eminentemente crítica e intransigente na procura da verdade em todos os planos: do conhecer, do sentir, do agir. A verdade possível ao indivíduo constitui-se no mundo de Hesse pela severa disciplina da verdade para consigo próprio, para com o ser individual em constante desvendamento: a fidelidade ao Eigensinn, móbil das sínteses do vivido e do pensado. O trânsito da permanente auto descoberta é o paradigma das suas histórias. Nelas as situações de crise nunca são iludidas nem resolvidas por adesão a formas de tranquilizadora salvação ou de apego ao passado. Mas o itinerário em que os seus protagonistas avançam na autorrealização não renega o que do passado possa ter perene valor.
É assim que, sem conservadorismo, Hesse preserva valores da cultura greco-cristã, enriquecidos pelo encontro com a sabedoria hindu e chinesa, realizando desse modo outra síntese de relevante importância para o mundo em que vivemos, tão valiosa como o caráter não-doutrinário da sua posição. A sua mensagem abre caminhos mas não aponta soluções: liberta e ordena mediante a «catarsis da arte»; a sua missão, tal como ele próprio a vê, é libertar e solidarizar-se. Numa carta a um leitor, escrita em 1950, diz: «Eu sou um poeta, um homem que procura e se confessa; compete-me servir a verdade e a sinceridade (e à verdade também pertence o belo, que é uma das formas do seu aparecer); tenho uma missão, mas pequena e limitada: ajudar a compreender e a perseverar outros que também procuram, quanto mais não seja dando-lhes a consolação de não estarem sós».
E será precisamente porque ao artista não compete a função de resolver, corrigir, propor ou ensinar, que a sua vis formativa conquista um espaço de mais eficaz comunicação libertadora. É precisamente enquanto órgão de «contemplação da realidade, a mais pura possível», que reside o alto valor da sua transmissão por via estética. Hesse confessa que sempre duvidou da pedagogia e sempre confiou na suave força persuasiva do belo e da arte, reconhecendo que na sua mocidade fora mais educado por essa força e por ela despertado para o mundo do espírito do que por quaisquer educações oficiais ou privadas. E propôs-se dar continuidade a essa missão em tempos difíceis, ciente como poucos da dificuldade e das insatisfações que comporta esse serviço numa época de transição em que as categorias estéticas sofreram tamanha desintegração.
Se me decidi a sublinhar esse aspeto da obra de Hesse, é porque ele terá justificado para mim o arrojo de meter ombros a uma empresa cuja importância ultrapassaria as insuficiências do translado no campo da consecução literária e estética. O tradutor dificilmente se apercebe, por falta de adequada perspetiva, dos êxitos e inêxitos da sua tarefa de transportador de cargas sémicas entre veículos diferentes. Não esquece, porém, a lenta paciência na procura da solução que esteticamente mais o satisfaça, a esforçada busca de alternativas até encontrar, não a mais próxima equivalência, mas a menos distante do original — cônscio de que a sua própria captação do original é uma entre outras possíveis. No seco dizer de um linguista que define a tradução como «a rearticulação de uma experiência estranha num modelo que nos é familiar» já está apontada a dificuldade de versão de qualquer texto mesmo que predominantemente denotativo. Tratando-se de textos acentuadamente conotativos como os literários e os poéticos, o escrúpulo do tradutor, ao assumir o risco de ficar aquém, consiste apenas na lúcida consciência dos seus condicionamentos, que vão desde o radical caráter aproximativo da proposta até à escolha de um critério que ao longo do texto assegure uma unidade e homogeneidade de soluções. Recordo-me que a preservação das estruturas rítmicas foi a minha preocupação dominante. Na impossibilidade de transferir o intransferível ou de produzir uma criação homóloga, parecia-me que a possível «fidelidade» ao ritmo salvaguardava as unidades superiores do estilo hessiano. Entretanto, logo reconheci que em certas áreas de significação muitas ressonâncias seriam abafadas, muitas conotações se perderiam irremediavelmente, designadamente no domínio das alusões e referências culturais. E este fenómeno começou logo pelo título dos livros. Por este vos exemplificarei o tipo de considerações e de opções que condicionaram a versão publicada.
Porquê, perguntar-se-á com justificada estranheza, traduzir Klein und Wagner por Ele e o Outro? Porquê semelhante ousadia? Porque não deixar no frontispício do livro os dois apelidos que teriam inclusivamente o aliciante do exótico?
Sendo ambas as palavras patronímicos de uso corrente na língua alemã, possui todavia a primeira, Klein, um sentido literal que o leitor alemão capta de imediato e que é opaco para o leitor estrangeiro. Se se mantivesse a palavra alemã Klein, o leitor português não apreenderia o seu significado de «pequeno» (neste contexto, sinónimo de comum, vulgar). Por outro lado, Wagner não é um termo tão opaco para o leitor português. Associa-o ao nome de certo músico alemão, autor da Tetralogia, mas dificilmente o associará, como o leitor alemão, a outros Wagners da sua literatura: o dramaturgo, o fâmulo de Fausto, ou, inclusivamente, à noção de ousadia veiculada pelo seu radical. Dir-se-á, é certo, que esta sobrecarga de ressonâncias não teria importância decisiva para a compreensão do título. Mas talvez se não considerasse que o relevo assumido pela palavra Wagner, sucedendo à do inexpressivo Klein, desequilibraria a ordem de prioridades do título.
Eis porque, não sabendo como vencê-la se torneou a dificuldade substituindo os dois nomes pela designação das funções que desempenham na narrativa. E foi a partir desse «eu» de Klein que era «Ele», o homem comum sem grandeza, com a sua face consciente, diurna, social que surgiu o «Outro» a sua face noturna, subconsciente, marginal – Wagner.
Em Narciso e Goldmundo houve igualmente que optar entre males menores. Porquê Goldmundo e não Crisóstomo, ou até Boca-de-Ouro? Aí prevaleceu a eufonia sobre o equivalente português etimologicamente rigoroso e a analogia desse aportuguesamento com os nomes de Edmundo, Raimundo e todos quantos com essa terminação são familiares aos nossos ouvidos. Não há dúvida que as vicissitudes de uma tradução de que estes exemplos anedóticos dão uma pálida ideia, bem nos permitem compreender o desabafo de Hesse quando confessa que após a leitura de um romance espanhol ou russo em versão alemã, um original da sua língua lhe sabia como «eine Mundvoll frischer Luft».
Demos então a palavra ao que terá permanecido do texto de Hesse no trecho que me proponho apresentar-vos, os últimos parágrafos da minha versão do capítulo final de Ele e o Outro:
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A sua vida desenrolava-se como uma região de florestas, vales e aldeias contemplada do cimo de uma alta montanha. Tudo tinha sido bom, simples e bom, e tudo se tornara, pela sua angústia e pela sua resistência, em torrente e confusão, em medonho remoinho e convulsão de miséria e desgraça. Não havia mulher sem a qual se não pudesse viver, e também não havia nenhuma com quem não se pudesse viver. Não havia coisa alguma, no mundo, que não fosse tão bela, tão desejável, tão capaz de dar felicidade como o seu contrário. Era bem-aventurado viver, era bem-aventurado morrer, desde que se estivesse só no universo. Repouso vindo do exterior não havia. Nem repouso no cemitério, nem repouso em Deus, nem sortilégio algum jamais interrompia a eterna cadeia do nascimento, a infinita sucessão do respirar de Deus. Mas havia repouso no próprio íntimo. Chamava-se: deixa-te cair! Não te defendas! Morre com gosto! Vive com gosto!
Todas as personagens da sua vida estavam junto dele, todos os rostos que amara, todos os cambiantes do seu sofrimento. Sua mulher estava pura e inocente como ele próprio, Teresina sorria como uma criança. O assassino Wagner, cuja sombra se abatera tão pesadamente sobre a vida de Klein, sorria-lhe gravemente, e o sorriso de Wagner dizia-lhe que também o seu ato fora caminho para a redenção, também um respirar, também um símbolo, e que também um crime, sangue e horror, não são coisas que existam de verdade, somente valorações da nossa alma torturada. Com o crime de Wagner tinha ele, Klein, passado anos da sua vida: a reprovar e a aprovar, a condenar e a admirar, a abominar e a imitar, tinha forjado séries infindas de tormentos, de angústia, de miséria. Assistira centenas de vezes, cheio de pavor, à própria morte, vira-se morrer no cadafalso, sentira o gume da navalha no pescoço e a bala na testa – e agora que estava realmente morrendo, a temida morte era tão simples, tão fácil.
A figura de Wagner afundou-se ao longe. Ele não era Wagner, já não era Wagner, não havia nenhum Wagner, tudo fora ilusão. Sim, Wagner podia morrer, ele Klein, viveria.
Correu-lhe água para dentro da boca e ele bebeu. De todos os lados, por todos os poros, entrava água, tudo se diluía. Estava sendo sugado, estava sendo sorvido. A seu lado, junto de si, tão juntas como as gotas na água, boiavam pessoas: Teresina, o velho cançonetista, a que fora sua mulher, e o pai, e a mãe, e as irmãs, e milhares, milhares e milhares de pessoas; também quadros e casas, a Vénus de Ticiano e o Mosteiro de Estrasburgo, se misturavam numa torrente gigantesca, impelida pela necessidade, rápida, cada vez mais rápida, vertiginosa, e de encontro a esta monstruosa torrente de figuras vinha outra torrente gigantesca e vertiginosa, uma torrente de rostos, pernas, ventres, animais, flores, pensamentos, crimes, suicídios, livros escritos, lágrimas choradas, densa, densa, cheia, cheia, olhos de criança e madeixas negras e cabeças de peixe, uma mulher com uma faca comprida e fixa enterrada no ventre em sangue, um jovem semelhante a ele com o rosto cheio de sagrada paixão, ele próprio aos vinte anos, o já esquecido Klein de outrora. Como era bom poder agora reconhecer isto: que não havia tempo. O que havia entre juventude e velhice, entre Babilónia e Berlim, entre bem e mal, entre dar e tomar, o que enchia o mundo de distinções, valorações, sofrimento, luta e guerra, era o espírito humano, o jovem, impetuoso e cruel espírito humano, na fase adolescente, delirante, e ainda longe da sapiência, longe de Deus. Inventava oposições, inventava nomes. Chamava belas a umas coisas, feias a outras, a estas boas, àquelas más. Um pedaço de vida era chamado amor, outro crime. Assim procedia o espírito adolescente, tolo, cómico Uma das suas invenções era o tempo. Uma bela invenção, um instrumento requintado de funda tortura para tornar o mundo mais complicado e difícil. De tudo aquilo que o homem desejava estava sempre e apenas separado pelo tempo, só por esse tempo, essa louca invenção. Era esse um dos esteios, uma das muletas, que urgia abandonar para conseguir a libertação.
A torrente das formas continuou o seu curso: a que era aspirada por Deus e a outra, em sentido contrário, expirada por Deus. Klein viu seres que se opunham à torrente, que se erguiam em terríveis convulsões e criavam horríveis sofrimentos: heróis, criminosos, loucos, pensadores, amorosos, religiosos. Outros viu, semelhantes a si, derivando rápidos e ligeiros na íntima volúpia da entrega, do acordo, bem-aventurados com ele. O cântico dos bem-aventurados e o infinito brado de angústia dos desventurados, formava sobre as duas torrentes do mundo uma esfera ou cúpula de sons, uma abóbada de música cujo centro era Deus, claro, invisível de claridade, uma essência resplendente, uma quintessência de luz, envolta no renascer da música pelos coros do mundo em eterna ressaca.
Heróis e pensadores, profetas e apóstolos, saíam da torrente do mundo: «Vede, este é Deus, o Senhor, e o seu caminho leva à paz», proclamava um e muitos o seguiam. Outro anunciava que o caminho de Deus levava à luta e à guerra. Um chamava-lhe luz, outro chamava-lhe noite; um chamava-lhe pai, outro chamava-lhe mãe. Um louvava-o como repouso, outro como movimento, como fogo, como refrigério, como juiz, como consolador, como criador, como destruidor, como redentor e como vingador. Deus, porém, não dava a si próprio nenhum nome. Queria ser denominado, queria ser amado, queria ser louvado, amaldiçoado, odiado, adorado, pois a música dos coros do mundo era o seu templo e a sua vida – mas era-lhe indiferente o nome com que o louvavam, o amor ou o ódio que lhe votavam, que o procurassem no repouso, no sono, na dança, no delírio: todos podiam procurar, todos podiam encontrar.
Klein ouviu então a sua própria voz. Cantava. Com voz nova e sonora, cantava alto o retumbante elogio e louvor a Deus. Cantava e vogava arrastado pela corrente, no meio de milhões de seres, como um profeta e um apóstolo. Soava alto o seu cântico, a cúpula de som subia, e Deus, ao centro, resplandecia. As torrentes prosseguiam em prodigioso bramir.
Manuela de Sousa Marques
1978, 2008.
Resenha à tradução de Ele e o Outro:
.:. João Gaspar SIMÕES (1953) Hermann Hesse, romancista alemão, Diário do Norte, Porto, 'Página literária, Livros', 26.02, 3-4.
Ler mais:
.:. MOURISCA, Vasco de Lemos (1948) A poesia de Hermann Hesse, O Primeiro de Janeiro, Porto, 17.11.
.:. SOUZA, João Paulo Francisco de (2006) Hermann Hesse nos Cadernos Culturais d’O Estado de S. Paulo, Património e Memória 2-1, Assis, SP, 1.
.:. SOUZA, João Paulo Francisco de (2007) Um lobo nos trópicos: a recepção crítica de Hermann Hesse no Brasil (1935-2005), Mestrado em Letras: literatura e vida social, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, SP.
.:. SOUZA, Luiz Eduardo da Silva e & Victor Tinoco DELGADO (2008) O Percurso de Sidarta e o problema da identidade, um estudo transdisciplinar do romance de Hermann Hesse, Psicologia UsP, São Paulo, (abr./jun.), 19(2), 213-234.
.:. ALMEIDA, Mariana Silva Campos de (2011) Uma análise de ‘Debaixo das rodas’ de Herman Hesse: os acréscimos pelo tradutor, Mestrado em Estudos da Tradução: teoria, crítica e história da tradução, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
.:. PIHEL, Ruslana (2013) Uma proposta de tradução de contos de fadas de Hermann Hesse num modelo de edição bilingue, Mestrado em Tradução, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.
E ainda:
.:. Hermann Hesse Home Page (em inglês e alemão);
.:. Hermann Hesse (em alemão);
.:. Hesse-Archiv: Inventar der Briefe an Hermann Hesse
.:. Hermann Hesse Übersetzungen nach Sprache — listagem de todas as traduções de Hesse para português, em Portugal e no Brasil (procurar sob 'Portugiesisch')
.:. Paisagem inspiradora - os anos de Hermann Hesse no Ticino
.:. Hermann Hesse, escritor, terapeuta, curioso
.:. "(...) tradução esmeradíssima de Manuela de Sousa Marques (...)", Teresa Bracinha Vieira, outubro de 2015.