Rainer Maria Rilke

 

 

III Elegia de Duíno

 

 

[TRADUÇÃO DEDICADA AO MEU FILHO 1981]

 

 

Cantar a Amada, eu quero. Cantar, porém,

 

o secreto, o pecaminoso Rio-Deus do sangue, oh, como é diferente!

 

O futuro amado, de longe por Ela pressentido, que sabe ele

 

do senhor da volúpia que na sua solidão, vezes sem conta,

 

antes dela o apaziguar, ai, e quase como se ela não fora,

 

escorrendo ignotas águas, erguia a fronte divina

 

e levantava na noite um tumulto infinito.

 

Ó Neptuno do sangue, ó medonho tridente!

 

 

Ó vento tenebroso do seu peito em volutas de búzio modelado.

 

Escuta, como a noite se cava e encapela! Ó estrelas,

 

de vós dimana a ânsia do amante pelo rosto da amada?

 

O fervoroso olhar que lhe desvenda o rosto puro lançaste-o vós, ó puros astros?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tu não, ai, nem sua mãe

 

lhe encurvaram expectante a arcada dos sobrolhos.

 

Não foi por ti, jovem que o esperas, não foi junto a ti

 

que a curva dos seus lábios se modelou fecunda.

 

Cuidas deveras tanto o ter comovido a tua leve aparição,

 

tu que perpassas qual matinal aragem?

 

Sobressaltaste-lhe o coração, sim. Porém, temores mais remotos

 

Desabaram quando ao de leve lhe tocaste.

 

Chama-o... Não o arrancarás de todo ao tenebroso convívio.

 

Ele quer, é certo, ele solta-se, liberto se acostuma

 

ao secreto pulsar do teu coração, aceita-se e começa-se.

 

Mas, ai dele, terá jamais começado?

 

Mãe, tu o fizeste em pequeno, tu, mãe, o começaste;

 

Para ti ele foi novo e para os seus olhos novos

 

inclinaste o mundo afável e ocultaste o hostil.

 

Mas onde, ai onde, vão já os anos em que a simples presença

 

do teu vulto esguio impedia o caos fervente?

 

Tanto lhe encobriste; suspeito, o quarto anoitecido

 

volveste inocente; teu coração de abrigo

 

diluiu um espaço mais humano na noite do seu espaço.

 

Nas trevas, não, na tua próxima presença

 

colocaste a luz que fulgia amiga.

 

Não havia estalido algum que o teu sorriso não explicasse

 

como se de há muito soubesses quando rangia o soalho...

 

E ele escutava, apaziguado. Tamanho era o teu poder

 

Quando te erguias, ternamente; para lá do armário se afastava

 

O vulto alto do seu destino e entre as pregas das sanefas

 

desviava-se o seu futuro incerto.

 

E ele, no leito, sossegado, sob

 

as pálpebras sonolentas esparsa a doçura das tuas fábulas

 

no antegosto do próximo adormecer,

 

parecia resguardado... no íntimo, porém,

 

Quem estancava, ai, quem continha as ancestrais marés?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ai, não havia cautela no seu sono; dormia

 

mas sonhava ardendo em febre: o que ele consentia...

 

Ele, tão novo, tão tímido, como se enredava

 

nos liames do seu íntimo, luxuriante acontecer,

 

nas entrelaçadas figuras crescendo asfixiantes,

 

perseguindo-se sob formas animalescas.

 

Como ele se entregava —. Amava.

 

Amava o seu íntimo, a sua floresta interior,

 

a selva dentro dele que desabava silenciosa

 

onde o seu coração se erguia, verde-tenro. Amava.

 

E abandonava-a para demandar a poderosa origem,

 

para além das raízes do seu ser

 

onde o seu ínfimo nascer já fora suplantado; amando

 

descia às profundezas do seu sangue, aos precipícios

 

onde o terror morava, saciado ainda de pais. Todo o horrível

 

o conhecia e acenava cúmplice.

 

Deveras, o hediondo sorria... raro

 

sorrias tu tão ternamente, Mãe.

 

Como não o amaria ele, se assim lhe sorria! Antes de ti

 

o amara, quando ainda o geravas, diluto

 

nas águas propícias ao germe.

 

 

 

Vê, nós não amamos como as flores, por um só ano!

 

Quando amamos sobe em nossos braços seiva imemorial.

 

Ó jovem Amada, não te esqueça isto:

 

em nós amamos não um único, futuro, mas

 

o caos revolto; não um só filho,

 

mas os pais que jazem em nós, no fundo,

 

qual derruídas montanhas, e o leito seco das antigas mães — toda

 

a paisagem silente sob o nublado

 

ou claro fado. Isto te precedeu, jovem Amada.

 

 

 

E tu, que sabes tu? Sabes que suscitaste

 

no teu amado tempos remotos. Quantos sentimentos

 

de passados seres emergiram revoltos? Quantas

 

mulheres te odiaram? Quantos homens soturnos convocaste

 

nas veias do mancebo? Crianças mortas

 

vogam ao teu encontro... Ó branda, brandamente

 

cumpre, confiante, uma terna tarefa caseira, — leva-o

 

para perto do jardim, dá-lhe a supremacia

 

das noites...

 

                    Contém-no...

 

 

Manuela de Sousa Marques

 

1981, 2008.

Rilke em 1897

Rilke, por Helmut Westhoff, 1901

Rilke no seu estúdio em Roma, 1903

M.ª Manuela de Sousa MarqueS PINTO DOS SANTOs

páginas de CRítica literária