Urbano Tavares Rodrigues, A Morte de Narciso-Goldmundo – 1966
[107 →] Só depois de ter vivido as alegrias e as dores de todas as paixões, depois de ter experimentado o amor, a luxúria, a fome, a peste, a guerra, o crime, o medo e a coragem, o egoísmo e a abnegação, depois de haver explorado a carne e o espírito de inúmeras mulheres – habitado por uma ânsia de ilimitação, mesmo na entrega mais veemente – só então Goldmundo logra materializar numa obra de arte o seu ideal de beleza: esse rosto de uma virgem, que é a síntese maravilhosa de tudo o que ele amou, de todas essas mulheres que desvendou, a quem fez sofrer e por quem sofreu para as conhecer, e até do sol e da lua, das florestas e do vento, porque semelhante rosto será, em última análise, uma imagem da totalidade, e para a totalidade[108 →] tende todo o misticismo estético de Hermann Hesse.
Sendo, aliás, como o é, quase toda a sua obra um longo diálogo interior entre os duplos, em Narciso e Goldmundo Hesse encarna nas duas personagens, que exprimem os elementos apolíneo e dionisíaco, ou mais precisamente, o intelectual Narciso a dignidade da solidão e da reserva, as satisfações do ensimesmamento e a escureza das suas funduras; o intuitivo Goldmundo o entusiasmo, a vertigem da sensação, a procura do belo pela experiência exterior, a busca inconsciente da infância perdida, o regresso à origem.
Nesse grande afresco da Idade Média que é o romance Narciso e Goldmundo, não há qualquer veleidade de reconstituição arqueológica, mas antes um palpitante bosque de símbolos, ao mesmo tempo que uma aprendizagem da vida e a descoberta dos mecanismos do pensamento e da arte, enfim reunidos na conjunção das existências paralelas, porém tão distantes, do frade e do escultor. A própria biografia de Hermann Hesse apresenta traços comuns com a dupla experiência de Narciso e Goldmundo. Destinado pelos pais à carreira teológica, Hesse [109 →] fez os seus estudos nos seminários de Maulbronn e de Tubinga. Se é certo que não teve a vida errante de Goldmundo, o seu temperamento paradoxal apetecia tanto a glória dos sentidos como o retiro, as cinzas e os veludos da interioridade, com o seu orgulho, os seus pélagos sombrios. Mas num e noutro 'modo' tentando sempre realizar a personalidade livre e autêntica, capaz de se ver sem se mirar, de se julgar sem comprazimento, É dessa dualidade, com o seu consequente apetite de unidade, que nasce a força da obra de Hermann Hesse, em que a amizade viril (e através dela a dialética dos contrários) desempenha um papel primordial, superado pelo desdobramento do 'eu' em Ele e o Outro (Klein und Wagner).
Certas ideias mestras insistentemente se repetem na sua novelística, que pretende apresentar-nos sempre, em ação e em reflexão, as chaves da existência. Tal o motivo da morte na água, com o seu significado de retorno à mãe, da qual sobretudo o artista, aquele que força as portas do mistério pelo conhecimento sensível, nunca se aparta – e por isso torna as obscuras exigências da carne em beleza, em esclarecimento do que existe.
[110 →] Marcado desde muito jovem pela sabedoria oriental e pela atmosfera pietista da sua ascendência de pastores protestantes, depois pela sua visita à Índia, facilmente se explica o seu pacifismo durante a guerra de 1914-18, que lhe valeu as primeiras perseguições nessa Alemanha de que ele, entretanto, representa, mau grado o pudor e a ironia latentes em tantas das suas mais delicadas e lúcidas páginas, o melhor espírito romântico, com tudo o que implica de imensidade de aspirações. Por isso Demian é um dos romances mais formosos e mais europeus do nosso século e o Nobel premiou com inteira justiça a obra romanesca de Hermann Hesse.
Inteiramente cônscio da importância das vozes discordantes, o autor de Peter Camenzind previu, com náusea e pavor, os desmedimentos do hitlerismo, os seus atentados à liberdade. Testemunho dessa sua atitude são alguns dos artigos de Frieden und Krieg. Durante o regime nazi, os escritos de Hermann Hesse foram proibidos na Alemanha e impressos na Suíça, onde de há muito ele habitava, tendo acabado por adotar a nacionalidade helvética. Não obstante, nada mais alemão, no bom sentido, como obra de cultura, do que a sua fantástica Viagem [111 →] no Oriente, impregnada toda ela desse amor do mágico tão caro à psique germânica e onde, na interpretação da vida e do sonho, se dão as mãos, em inesperada farândola, figuras da mitologia e da literatura de que ele próprio provém, desde Heinrich von Ofterdingen ao alquimista Lindhorst, até às criações da sua própria mente, que à beira dele permanecem para além do romance concluso.
A interdependência de todas as coisas em relação ao cosmos é talvez a cúpula da ficção, não muito extensa, de Hermann Hesse, graduada e sintonizada em esforço de procura e revelação. Da disponibilidade de Goldmundo, da tensão de Klein em busca de um 'si' não atraiçoado, do choque de ambos com um elemento água-mãe-paz, tira-se a dupla lição de uma conquista poética, frustrada ou não, de unidade – até de re-união –, e de libertação do indivíduo, de assunção de uma autenticidade comprometida.
Sempre, de resto, Hermann Hesse, individualista à l' outrance, se opôs ao aniquilamento do homem, apresentando, contra o carneirismo que submergiu a Alemanha dos anos 30 e 40, a consciência de si, o Eigensinn, suprema virtude, no seu ver, que só escuta e respeita o 'si'.
[112 →] Não quis Hermann Hesse, após a guerra que derruiu os valores anti-humanos do nazismo, tomar posições políticas, nem optou por qualquer das Alemanhas divididas. Confinado, porém, na sua arte e defendendo do mundo a sua intimidade, permaneceu, até ao fim, Narciso-Goldmundo, velador da beleza como descoberta pessoal, encontro com as fontes genesíacas e participação no sublime – solidário entanto que solitário, como poderia dizer Albert Camus, seu parente de espírito.
O Tema da Morte, Ensaios.
Lisboa: Cronos, 1966, 105-112.